Quando morávamos na China, fazia parte do trabalho do meu marido socializar-se com empresários locais, portanto ele rapidamente aprendeu como sair para comer fora com chineses em suas casas de banquetes, restaurantes tradicionais onde eles adoram fazer almoços e jantares de negócios, e também celebram casamentos, aniversários, etc. Se você for convidado por um chinês, para uma refeição em uma casa de banquetes, prepare-se. Pode levar terço, imagem de Iemanjá, cristais, raminhos de sete ervas, o que estiver a sua disposição para te ajudar a segurar a aflição, pois é muito difícil disfarçar o desgosto quando alguém tira o par de pauzinhos chineses da boca, pega um pedaço, sei lá do que, de uma travessa, põe no seu prato, e fica te encarando esperando você comer.
Este quadro se complica quando você descobre que somente o anfitrião recebe um cardápio, e pede para todos. Não tem choro nem vela. A não ser que você compreenda mandarim, você só saberá o que vai comer quando os pratos forem servidos. As travessas são colocadas no centro da mesa que em geral é rotatório, tipo “lazy-Susan” como dizem os americanos, e todos se servem com seus pauzinhos, aqueles mesmos que eles usam para levar a comida à boca. O prato a sua frente é pequeno, como um pratinho de sobremesa, e conforme se enche de ossos, e outras partes indesejadas, vai sendo substituído. No mínimo pede-se um prato de carne vermelha, um de peixe, um de frango, um de porco, um vegetal quente e um frio. Para finalizar arroz, e como sobremesa frutas a alguns docinhos de feijão deliciosos. Dependendo do tamanho do grupo e da ocasião pedem-se muitas variações dessa combinação. O Flavio chegou a atender um banquete com trinta e três pratos diferentes.
Não é verdade que em toda China come-se absolutamente de tudo. As pessoas nascidas em Shanghai, por exemplo, não têm costume de comer escorpião ou carne de cachorro, mas como Shanghai é uma metrópole que recebe chineses de todo o país em busca de melhores oportunidades, encontra-se de tudo. Os Shanghaineses, no entanto, têm preconceito contra os emigrantes de outras províncias, e dizem que eles comem tudo que tem quatro pernas, menos as mesas e as cadeiras porque elas não andam. Quando eu ouvi essa estória de uma Shanghaines de classe média muito bem vestida eu pensei aliviada, que maravilha. Delirei!
Os mais jovens de classe média para cima, em Shanghai e Beijing, digamos abaixo dos quarenta anos, em geral são vaidosos e cultivam boas maneiras. Preciso destacar que conheci muitos chineses cultos, bem vestidos, e de excelentes maneiras, entre os colegas de trabalho do Flavio e no bairro onde morávamos, mas essas são exceções. A maioria da população tem sérias deficiências no quesito higiene pessoal, e nos modos e costumes. Porém todo chinês é orgulhoso, e um desrespeito aos seus costumes pode atrapalhar uma negociação, e aqui entre nós, acho que eles se divertem nos colocando em saias justas.
Pois bem, os primeiros banquetes chineses do qual participei vieram carregados de pressões sociais, gafe nem pensar, afinal foram todos durante a semana de abertura das Olimpíadas de 2008 em Beijing, onde meu marido fazia parte da comitiva da Kodak, empresa para a qual ele trabalhava na época, e que era uma das patrocinadoras oficiais dos jogos. Lá participamos de vários eventos, o primeiro foi um banquete maravilhoso no Grande Salão do Povo que fica na Praça da Paz Celestial. Este evento incrível, num prédio histórico tão importante onde se recebem dignitários, foi elaborado para agradar aos ocidentais presentes, incluindo o Board da Companhia, e clientes convidados pela empresa, grandes empresários vindos de todas partes do ocidente para atender aos jogos. Também participaram diretores gerais, como o Flavio, que foram a trabalho para receber e acompanhar os clientes durante os eventos Olímpicos e de negócios. Foi um momento inesquecível, absolutamente espetacular. E eu que havia chegado de mudança a Shanghai fazia apenas uma semana, deixado minhas filhas na nossa nova casa com meus pais, e embarcado para Beijing especialmente para atender aos jogos olímpicos com o maridão, estava nas nuvens.
No dia seguinte assisti a abertura dos jogos de uma cadeira numerada muito bem localizada e fui das nuvens ao paraíso, que show fantástico. E assim seguia eu, deslumbrada com os chineses, sua cultura milenar, e suas comidas, que até então tinham sido preparadas para o paladar ocidental, para o meu paladar. Na nossa terceira noite em Beijing participaríamos de um banquete para os clientes locais da companhia, empresários vindos de várias províncias da China a convite da Kodak, e que estavam muito curiosos para conhecer o novo gerente geral da companhia na Ásia, meu marido, chique mesmo isso, e eu estava animadíssima para mais um banquete maravilhoso.
O grande porém, que a deslumbrada aqui não considerou, é que este banquete deveria impressionar a um grupo de empresários chineses com suas esposas. O cardápio escolhido com antecedência tinha sido elaborado para agradar aos clientes, óbvio, e meu marido e eu seríamos, não apenas os únicos ocidentais, mas a principal atração. O Flavio nunca havia me chutado por baixo da mesa, mas naquela noite achei que minhas canelas ficariam roxas. Ainda bem que existe baijiu (se diz baidjou, que significa literalmente bebida branca, e em português chamamos de whisky de arroz ) um destilado com quarenta a sessenta por cento de teor alcoólico tradicionalmente feito de sorgo, mas que pode também ser de outros grãos como trigo, cevada, painço e arroz, dependendo da província.
O baijiu é servido em pequenos copos, como aqueles de vodca, mas um pouco mais baixos, e a prática é dizer entusiasmadamente gan bei (pronuncia-se gambei que significa beba tudo em mandarim, e se usa como usamos a palavra saúde quando brindamos), virar o copo e somente depositá-lo de volta na mesa vazio, não pode sobrar nem um golinho para o próximo brinde. Durante banquetes chineses brinda-se muito, e por qualquer coisa, o que me ajudou bastante naquele dia. Caros leitores(as) eu não sou de beber, mas em minha defesa preciso dizer que tem comida que só desce com álcool, muito álcool.
Pois bem, chegamos ao evento, fomos apresentados a todos os convidados, e nos sentamos numa mesa cercados pelos maiores clientes da companhia na China. O que eu ainda não sabia, mas significava se danou querida. Estes senhores, na maioria acima dos cinquenta, e suas esposas, na minoria acima dos cinquenta, estavam animadíssimos, e conforme os pratos foram chegando a mesa se puseram a falar de sua gastronomia com entusiasmo. Os chineses tem muito orgulho de sua gastronomia, Deus os abençoe, como diz o pessoal do sul dos Estados Unidos. Enquanto eles falavam eu sorria e tentava arduamente compreender o inglês deles, e de repente um pedaço não sei do que apareceu no meu prato diretamente do hashi (pauzinhos chineses) de um senhor sentado ao meu lado. Senti um chute na canela, me empertiguei, peguei o item e enfiei na boca sorrindo e assentindo com a cabeça, ufa era uma carninha parecida com frango que eu não perguntei o que era exatamente, preferi ficar na ignorância. Meu colega de refeição assentiu sorrindo satisfeito, e meu marido deu tapinha encorajador no meu joelho por baixo da mesa. Socorro! Pensei eu desconsolada, e meu marido ergueu seu copo e gritou gan bei! Todos repetimos gan bei e viramos nossos copos. Detalhe, se alguém na sua mesa grita gan bei todo mundo tem que beber junto.
Tentei manter meu pratinho cheio de comidas que pareciam palatáveis com a ajuda do Flavio, para não deixar espaço para contribuições do meu vizinho, mas vira e mexe aparecia alguma coisa desconhecida. Para eles isso é extremamente simpático, e eu não estava em posição de contrariar ninguém sob pena de ofender algum cliente importante da companhia, e gerar problemas futuros para o meu marido. Os chineses guardam rancor social pra valer.
Seguia eu orgulhosa da minha atitude positiva diante da situação quando chega a mesa um peixe assado, um tanto pálido, mas bem bochechudo. Acontece que as bochechas dos peixes são iguarias muito apreciadas pelos chineses. Meu vizinho disse algo em mandarim, todos os chineses concordaram sorrindo, e ele então removeu uma das bochechas do peixe a nossa frente com seu hashi, e depositou no meu pratinho. Olhei para aquele pedaço de gordura gosmenta no meu prato e sem querer arregalei os olhos, meu marido me deu um chutaço por baixo da mesa e eu comecei a rir, meio histérica meio bêbada. Quando levantei os olhos notei o silencio observador dos nossos colegas de mesa, acenei com a cabeça rigorosamente enquanto ria para a aprovação geral do meu público, me alinhei, e enquanto com uma mão pegava a bochecha do peixe na ponta dos meus pauzinhos, com a outra levantei o copo misericordiosamente cheio até a boca e gritei GAN BEI! Enfiei aquele treco liguento na boca e virei o baijiu em cima. Meu público aplaudiu, e depois disso não lembro mais nada.
Acordei no dia seguinte com uma dor de cabeça do tamanho da China e um gosto horrível na boca, mas o Flavio disse que eu arrasei no banquete e que saí de lá andando com as minhas próprias pernas.
Para quem gostaria de tentar um banquete chinês há um contato interessante no link abaixo que descreve um em detalhes:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/comida/ult10005u368510.shtml